David, Anna e eu estávamos presentes, completamente enraizados naquele chão, esperando só o momento de podermos nos despir de pensamentos externos e começarmos a atuação, a entrega, a resistência. O exercício inicial foi uma espécie de mantra atuado, uma Ave-Maria diferente, sentida, os corpos mexendo de acordo com cada palavra, cada frase. Sentir e atuar aquilo eram difíceis, em alguns momentos nos perdíamos na reza, na repetição, no espaço. Depois, fui arremessado aos leões. Num cubículo, um cubo de madeira, tinha de conter meus movimentos e fazer uma cena, pensar numa cena, em palavras, em gestos, não podia parar. O que veio espantou-me, as palavras, a cena: a santa pelada surgiu como quem surge vestida, discreta, depois me tomou o corpo, o pensamento, repeti várias vezes até conseguir um grau de entrega e de concentração que eu jamais imaginava. Sentia-me envergonhado, tal qual o personagem, castrado por me mostrar ali, diante deles, toda minha fraqueza em dizer: “eu era uma santa, uma santa pelada, que mostrava o peito, que se mostrava toda pra todo mundo”. E eu dizia, eu ria, eu me entregava, um cansaço começou a me tomar, e quando parecia rendido e morto, David introduziu a Anna na cena, fizemos tudo com os corpos, com as falas, com a santa.
Rolávamos no chão e esculpíamos imagens belas, mãos entrelaçadas, abraços findos, olhos concentrados. David nos guiava diante de nossas permissões, diante de nossos desmembramentos, diante de nossas loucuras. Confiantes, produzíamos imagens pictóricas, falas esparsas. Revezávamos na santa, mas éramos um só corpo, um só pensamento.
No final, acabou que foi uma criação interessante. Apesar dos pesares, estamos empolgados e queremos continuar. O palco permanece. Permanecemos inertes no estado de entrega, a soltura de nós mesmos nos traz ao compromisso e ao deleite que só nós nos permitimos. Estamos diante de nós mesmos, fonte de arte e de criação.Num distante 8 de maio de 2008
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